terça-feira, 14 de julho de 2009

Onde termina o jogo e começa o culto

Artigo de colaborador convidado: Rafael Costa Oliveira

Confesso que, depois de assistir de forma despretensiosa à final da Copa das Confederações de 2009, a manifestação religiosa dos jogadores brasileiros (jogadores e integrantes da comissão técnica em círculo, ajoelhados e abraçados no meio do campo rezaram, fervorosamente, em alto e bom som) não me levou a grandes elucubrações. Sim, devo admitir também que senti certo desconforto com toda a situação, mas não passou disso, desconforto semelhante ao que senti na semifinal do campeonato paulista quando o time santista se comportou da mesma forma ao bater o Palmeiras, no mesmo ano. Ainda assim, algo que não me levou, ao menos, a comentar isso em alguma roda de bar.
Bem, dentre episódios tão semelhantes, ambos protagonizados por jogadores brasileiros, e não faltariam mais exemplos, podemos identificar algumas semelhanças e diferenças. Dentre elas, primeiramente, o alcance e repercussão que ambas as manifestações alcançaram. Assim como não levei o ocorrido na semifinal do paulistão a nenhuma mesa de bar, não me lembro de ter escutado de ninguém, ou mesmo de parte da imprensa, qualquer menção quanto ao ocorrido. Nenhuma manifestação da Federação Paulista de Futebol, CBF ou qualquer outra instituição.
Ora, parece que o mesmo não ocorreu com a seleção brasileira. Vale lembrar que estamos tratando de um jogo de repercussão mundial, nas terras da futura sede da Copa do Mundo, um jogo transmitido e acompanhado por diversas emissoras e meios de comunicação, que se ocupam com o esporte mais popular do mundo. Nesse caso, a manifestação ganhou outra importância, principalmente no continente Europeu, onde houve manifestações contrárias ao ocorrido. A Associação Dinamarquesa de Futebol se pronunciou oficialmente sobre o fato, se posicionando de forma contrária à manifestação: “A religião não tem lugar no futebol (...) Misturar religião e esporte daquela maneira foi quase criar um evento religioso em si. Da mesma forma que não podemos deixar a política entrar no futebol, a religião também precisa ficar fora”.
A justificativa para a observação da Associação Dinamarquesa de Futebol é a preocupação de que os campos de futebol europeu, assim como na África em 2010, possam virar um cenário de disputa religiosa e de manifestações extremistas, ou mesmo que tais campos possam abrigar manifestações religiosas semelhantes por parte de mulçumanos que hoje atuam nos campeonatos europeus. De sua parte, a Fifa diz ter enviado um comunicado à CBF tratando do ocorrido e afirma estar acompanhando de perto a situação. Vale lembrar também que as regras da entidade que regulamenta o futebol internacional proíbem tais manifestações, tanto políticas como religiosas, mas a mesma afirma que o ocorrido se deu após o fim da partida.
Chegando às vias de fato, é de conhecimento de todos que tais questões religiosas, que acabam por atravessar o campo político, são preocupantes em diversas partes do mundo e acredito que não devo me prolongar em tal aspecto da discussão, tratar de questões que envolvem o Oriente Médio em que assistimos a manifestações extremistas de parte a parte, a questão aqui não é essa, ou não somente.

Acredito ser válida a preocupação demonstrada por algumas entidades européias, à medida que uma competição esportiva acaba se tornando palco de um ritual religioso que sugere mais que a simples demonstração de fé, ainda que cada qual deva ter liberdade para demonstrá-la. Fato semelhante, que me vem à mente neste momento, foi a “demonstração” de fé dada por Kaká, reconhecido craque mundial do futebol brasileiro, quando, ao ganhar a premiação de melhor jogador do mundo, cedeu seu troféu à Igreja Neopentecostal de origem brasileira à qual tem associada sua crença. Parte do mesmo atleta a insistência incomum em manter sempre por baixo da camisa das equipes que defende a mensagem Belong to Jesus, para, sempre que oportuno, mostrar aos holofotes da imprensa. O que é preocupante em tais casos relatados é que, mais que uma demonstração de fé pessoal, tais atos acabam por servir de bandeira a uma ideologia.
É triste, mas infelizmente não surpreende, o fato de que os cultos da mesma Igreja Neopentecostal à qual o jogador Kaká tem atrelada sua fé, transmitidos por televisão e rádio, citarem o próprio jogador como uma prova de que pertence ao “ministério de Jesus” o “trono dos esportes” (“tronos”, segundo a instituição, compostos, ainda, pela política, pelos meios de comunicação, pelos espetáculos artísticos etc.). Esse “trono” deve ser utilizado para evangelização de fiéis, e qualquer manifestação contrária ou divergente a essa doutrina deve ser combatida, por ser reconhecidamente “demoníaca”, como assim considera tal instituição.
Acredito que deva causar estranheza em alguns leitores, ou um mero “que me importa” em outros, o fato de tais idéias estarem sendo veiculadas em terras tupiniquins, de habitantes reconhecidamente cordiais, em que política e futebol não se discutem. O que é problemático em tais discursos é o fato das ideologias veiculadas serem intolerantes, excludentes e pouco democráticas.
No alto deste 12 de julho, duas semanas após o 28 de junho, final da Copa das Confederações, acredito ter encontrado a chave para entender o tal desconforto que senti ao ver o que já foi relatado. Seja por meio das reclamações da Associação de Futebol Dinamarquesa, com as quais tive contato por meio de Carta Capital, ou por meio do programa televisivo da Igreja Neopentecostal** citada, o qual tive a oportunidade de ver ‘zapeando’ despretensiosamente a TV na madrugada, cheguei à conclusão de que realmente é correta a conclusão dada pela mencionada revista ao caso: “quando um ritual religioso é imposto ao público como parte do espetáculo é hora de repensar onde termina o jogo e começa o culto”.***

* e *** - Carta Capital. Ano XV, nº 553. 08 de julho de 2009.
** - Rede Gospel - Programa exibido 11/07/2009 – UHF 53 / Net 28

Um comentário:

  1. Parabéns pela eloquente e esclarecida matéria Rafão!

    Concordo genuinamente que tais manifestações devam se restrigir a seus templos e fiéis, e não continuamente impostas aos expectadores. Vivemos em um país láico. Alguém deveria explicar para esses atletas o que isso significa.

    Que nos respeitem! Direito de crença sempre, seja ela qual for, mesmo que seja não acreditar em nada!

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