sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O melhor meio-campo – Corinthians, 98/99



A cultura militarista do futebol, presente especialmente na Província de São Pedro, dá conta de que todo jogador tem que ser um soldado em busca de um ideal único e intransferível, o da vitória – e para isso, os 11 homens em campo e os 7 do banco têm de ser machos sem vontades, sem quereres, sem picuinhas, sem ciúmes e sem todos os defeitos comuns ao homo sapiens. A tal história do “grupo unido”, que todos valorizam – e que o melhor meio campo que vi jogar mandou para as cucuias no nada longínquo ano de 1999.

Há dez anos o Brasil tinha um campeão, que repetiria a dose em dezembro do mesmo ano, um campeão incontestável apesar do tempo de mata-matas e outros desvios da sorte. O Corinthians liderado por Oswaldo de Oliveira, herdeiro de Vanderlei Luxemburgo, que começava a acossar manicures em busca do sonho da Copa do Mundo com a Seleção Brasileira. É evidente, porém, que não será ele o assunto – mas sim o grupo de cobras criadas que tinha o seu time, especialmente no meio campo, onde desfilavam Vampeta, Rincón, Ricardinho e Marcelinho Carioca.

Era um meio campo rico, caro e reluzente, sem dúvidas. Isso olhando de fora, ou com os dez anos passados. Apesar do Corinthians ter a parceria com um banco americano que levava quatro sobrenomes, nenhum dos atletas era realmente caro quando chegou no Corinthians. Vampeta e Ricardinho estavam perdidos na Europa – em PSV e Bordeaux, respectivamente – no ano de 1998, quando acertaram suas transferências para o Parque São Jorge. Rincón pertencia ao Palmeiras, em uma segunda passagem menos brilhante que a primeira, entre 1993 e 1994, e foi o jogador mais caro. Marcelinho já era ídolo no clube, saiu para afundar no Valencia e foi comprado pelos TELEFONES da FIEL, através do DISQUE-MARCELINHO, configurando uma das transferências mais bizarras da história do futebol brasileiro – a Placar disse na época que foi uma farsa, mas a história é um espetáculo.
A questão é que o perfil de nenhum deles cabia na figura do “grupo unido”. Vampeta, polêmico, deixou uma frase sua nos anais do futebol brasileiro quando referia-se ao atraso de salários no Flamengo de 2000: “Eles fingiam que me pagavam, eu fingia que jogava”. No ano referido de 1999, ele fazia com o atacante Edílson uma dupla de baianos que fechava uma senhora panela, recheada com shows horrorosos de axé e viagens espertas a Salvador nos dias de folga. Conta Edílson que a grande amizade nasceu na delegacia, quando ele estava preso por desacato e Vampeta ficou do seu lado por toda a madrugada, esperando a solução. Feio pra cacete, ainda posou de pau duro para uma revista gay, disse que gostava “de outra fruta” e doou o cachê inteiro para um cinema em Nazaré das Farinhas. Esse era só o camisa 5.
Com a 8, Freddy Rincón, que hoje fala português e lidera um time da base alvinegra. Quando vestiu a alvinegra pela primeira vez, disse aos jornalistas que pediam um beijinho na camiseta, um deboche com o recém deixado Palmeiras: “Só beijaria a camisa do meu Deportivo Cáli”. Nunca negou que jogava por dinheiro – por isso mesmo, deixava os pudores e fingimentos no vestiário, entrando no campo disposto a patrolar os adversários na bola e na porrada. Isso inclui até mesmo cuspes na cara de Paulo Nunes.
Na época, Ricardinho, número 11, era louvado como o bom moço da turminha. Rapaz humilde, saído do interior do Paraná, jogado aos leões na difícil França, era o queridinho de alguns setores da imprensa que não convivem muito bem com opiniões próprias. Reportagens da época já davam a entender que ele era também um formador de bolinhos. Até uma pauleira entre ele e Marcelinho que estourou mesmo em 2001, com direito a agressões físicas, acusações de deduragem e ligações para jornalistas.
E Marcelinho, camisa 7. Que chamava Jesus Cristo fora do campo e entrava por cima dentro dele. Um dos jogadores mais odiados da sua época no futebol brasileiro, que correu de Edílson no vestiário – o baiano, armado com uma faca, queria “conversar” sobre uma acusação de trairagem – foi expulso da Seleção pelo próprio Luxemburgo, que oito anos depois lhe chamou de moleque safado em rede nacional.

Tudo isso afora o que não sabemos e nunca vamos saber. A questão toda é o que acontecia quando eles vestiam a 5, a 8, a 11 e a 7. Grandes jogadas, passes, dribles, gols, vitórias e taças. Poderiam não jantar juntos na festa da vitória, mas brigavam muito e esbanjavam qualidade técnica.

Vampeta era um 5 clássico, um dos últimos centromédios. Raramente errava passes e ganhava poucas jogadas na pura força física – tinha como principal recurso a velocidade, com e sem a bola, o que permitia sempre boa recuperação na hora de levar um come do meia. Rincón sim, era um tanque de guerra, que corria da área a área trombando com os adversários. Rincón era um volante quase completo na sua época, contemporâneo que foi de outros gênios da meia cancha como Redondo, Verón e Davids – tinha força e também muita qualidade técnica, batia bem de fora da área e chegava bem dentro da área.

Ricardinho sempre foi o meia esquerda cerebral que ainda comanda as ações quando está jogando pelo Atlético Mineiro, lembrando um pouco dos seus grandes tempos. Marcelinho, impulsivo, finalizador, meia-atacante, um dos maiores mestres da história do futebol nacional em bolas paradas. Talvez o último expoente da guilda de privilegiados que metem a bola onde querem, como se usassem as mãos.

Quase todos os leitores do Impedimento têm muito viva ainda a memória desse grande time. Nem cabe, então, estender muito todas as devidas loas que esse timaço merece; aqui, porém, está uma singela resposta ao Prestes. Esse foi o melhor meio campo que eu vi jogar. Pelo simples fato de que tinha quatro atletas que tinham capacidade de decidir partidas, versáteis, habilidosos, não fugiam da porrada e não só tinham opiniões próprias, como levaram ao gramado o hoje tão combatido atributo da personalidade.

Tinha tudo para dar errado e deu muito certo, por dois anos.

Até a vitória,
Luís Felipe dos Santos

PS: texto retirado do blog http://impedimento.wordpress.com/

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